sábado, 31 de maio de 2014

XXX - BOFETADA... EM PLENA MATA

-FARDA OU FARDO?-
Almoçados no Quartel de Cangumbe, com carregamento de víveres e mais munições já efetuado, eis-nos de novo na picada de retorno ao aquartelamento em bivaque, logo, temporário. Dispositivo devidamente adequado para vencer os 180 quilómetros, de intenso stress perante uma eventual emboscada a todo momento.

CONTRATEMPO POR VIATURA ATASCADA
Chegámos ao destino já noite cerrada - pois em África escurece muito cedo -, após umas seis horas de viagem, com várias paragens pelo meio, pois algumas viaturas atascaram naquele terreno lodoso face à chuva caída.

Cansados, pela viagem, pelo esforço despendido nas ações de desatascamento e pelo próprio stress, a nossa vontade premente era ir jantar e descansar. O Capitão Santana manda-me chamar e diz-me: “Mota, é preciso descarregar já as viaturas porque elas vão ser precisas às 5 horas da manhã para saída em Operações!”. Dirijo-me ao pessoal, ainda aguardando ordem de destroçar, e transmito a necessidade de momento. Todos imediatamente deram início ao descarregamento das Berliets, transportando o seu conteúdo para o local respetivo, consoante o tipo de material em causa. Mas … há sempre um mas em tudo. Um deles, Soldado com especialidade específica, talvez por entender que só aos Atiradores incumbia essa tarefa, disse que estava cansado e com fome e que iria comer alguma coisa e descansar. Disse-lhe que não podia de modo algum abandonar o local sem a tarefa terminada e que todos nós nos encontrávamos em igual situação e que todos pretendíamos o mesmo desejado descanso. Mas havia aquela incumbência prioritária. Desobedecendo às minhas ordens, virou costas e foi para a sua tenda … enquanto os camaradas cumpriam o estabelecido. Fui no seu encalço, procurando sensibilizá-lo para o que estava em causa e despertá-lo para a realidade. Estava eu agora a fazer instintivamente um balanceamento perante uma insustentável atitude, sob o ponto de vista militar, e uma compreensível causa humana. Fui treinado para obedecer e fazer-me obedecer, pois ordens são ordens. É essa a essência da disciplina militar sem a qual não há Exército. Entrei na tenda com a minha G-3 em bandoleira e ele já havia pousado a sua. Qual é o meu espanto quando o vejo “crescer” para mim. Fiz-lhe frente e espetei-lhe uma valente bofetada na face e agarrei-o pela camisa. Ele soltou-se e correu para pegar na sua arma. Retirei imediatamente a patilha da posição de Segurança da minha e fiquei expectante. Outros Soldados acorreram logo e imobilizaram-no. Entrou num choro convulsivo, como uma criança, e agarrou-se a mim a pedir desculpa. Talvez não tivesse aguentado o stress sofrido naquelas horas… Disse-lhe: “Sr. R…, dado o seu atual estado psicológico, fica por mim dispensado de ir descarregar as viaturas”, e retirei-me. No dia imediato, o Capitão Santana, sabedor da ocorrência, desconheço por que via, disse-me para apresentar uma participação, porque queria punir o Soldado. Disse-lhe: “Meu Capitão, desculpe, mas não apresento essa participação”“É uma ordem que lhe estou a dar!”, retorquiu de imediato. “Ele já recebeu uma punição, não vai receber duas pelo mesmo ato. Então vai ter que me punir a mim, porque não vou apresentar nenhuma participação”, respondi. O assunto morreu ali. Vim a saber posteriormente que o Capitão Santana teria dito a alguém que ambos deveríamos ser punidos. Como essa suposta afirmação é incompatível com o que me ordenou, a ser verdadeira, só teria sustentação pelo desconhecimento das circunstâncias do sucedido. Desse ato resultou, daí para a frente, uma amizade muito forte entre o Sr. R… e eu próprio. Hoje, fazendo uma retrospetiva, e recolocando-me no contexto, penso que a minha atitude não deixou de ser correta, embora admita que outros possam não a compreender e interpretá-la até como uma prepotência. Apesar de ele ser daqui da área do Porto, nunca mais o encontrei, mas tenho a certeza que a nossa amizade se terá fortalecido e tornado perene. Gostaria de lhe dar um abraço franco e fraterno.

Carlos Jorge Mota

1 comentário:

  1. Tenho como prencipios não comentar certas situacôes militares,mas neste acontecimento do passado tenho que dizer que tiro meu"chapeu" a atitude tomada .

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