-OPINIÃO-
Poderá parecer paradoxal falar ou escrever sobre um tema associado à guerra colonial, quando nao vivenciámos, de forma direta, os acontecimentos, nem estivemos expostos a experiências tão absurdas e desumanas como as que ouvimos relatar aos verdadeiros sujeitos dessa guerra. Tendo essa circunstância como motivo mais imediato para a nossa reflexão, não deixaremos, no entanto, de aludir a toda uma geração de homens e mulheres que experimentou os efeitos dolorosos desse acontecimento humilhante da nossa história. Mas perguntar-se-á: terá sido a dor menos intensa e injusta para os que a viveram do lado de cá? Sabemos que a guerra do ultramar provocou muito sofrimento e não apenas aos que a viveram do lado de lá do mar. Em termos éticos, políticos e sobretudo humanos, provocou, continua a provocar efeitos diferidos enquanto passado ainda tão presente.
Mas, em todo o caso, o que nos importa neste texto não é abordar os diversos modos humanos de sofrer, cartografando o grau de intensidade da dor. Na verdade, a dor e o sofrimento são experiências profundamente singulares, complexas e íntimas, daí a impossibilidade de se avaliar quanto vale uma dor. Todos sabemos que o acontecimento da guerra, enquanto acontecimento, foi vivido como um mal e como uma ameaça à pessoa humana e ao seu projeto de vida, estigmatizando as linhas de uma experiência de profunda rutura com o presente. Cá e lá ficámos mergulhados num tempo não cronológico, riscado a lápis em calendários inertes que regulavam um quotidiano disfórico e decetivo, pois a ausência tinha levado consigo o futuro. Era como se o fio da história ficasse suspenso pelo tempo da incerteza e pelo medo da perda.
Sim, o medo imaginado e/ou real que era imanente tornava-se todos os dias numa ameaça iminente. Em verdade, vivíamos num receio permanente de receber más notícias. Sabíamos que o lugar do outro estava marcado pela vulnerabilidade, pelo acidente e pela morte.
Somos o único ser que procura dar forma ao medo, para que o possamos superar. O medo remete para uma reação perante uma ameaça concreta, identificável, pelo menos nos seus contornos mais evidentes. Conhecendo as causas que geram o medo, é possível classificá-lo, catalogá-lo e, progressivamente, racionalizá-lo tendo em vista dissipar a estranheza nele contida.
Quando o medo ultrapassa esses limites, isto é, quando se transforma numa ameaça abstrata ou indefinida, escapa às leis da lógica e coloca o homem à beira do abismo, numa situação de absurdidade, atormentando-o impedindo-o de ter uma vivência de bem-estar, transformando-se o medo em angústia e agonia, assumindo uma amplitude maior e causando uma desconforto emocional muito grande. Um mal que leva o sujeito, muitas vezes, a bater no fundo, esgotando-lhe a vida e calando-lhe a voz. Este silêncio tem a violência expressiva de um grito que primeiro foi recalcado e depois, a pouco e pouco, foi sendo esquecido porque recordar provoca dor.
Os traumas da guerra estão ainda por supurar, o que na opinião de Eduardo Lourenço é "um caso de inconsciência coletiva".
A guerra colonial, enquanto acontecimento histórico, levanta ainda grandes interrogações, nunca foi reintegrado num discurso de saber. Na verdade, à boa maneira portuguesa, o caminho foi obliterar e assumir uma atitude de amnésia, lançando um nevoeiro sobre os factos, atribuindo-lhes um certo ar de «normalização», como se não existissem culpados nem culpa.
Todavia, muito já se escreveu sobre a guerra do ultramar, mas a sua verdadeira história está ainda por fazer. Essa "resistência" coloca-se particularmente ao nível do testemunho, isto é, da deitização do "eu-aqui-agora". De facto, o testemunho faz-se sempre na primeira pessoa, e numa primeira pessoa insubstituível, única, que presenciou e/ou viveu os acontecimentos que constituem o conteúdo do seu depoimento. Daí que a história não seja um mero registo mimético e passivo dos acontecimentos do passado e da imagem dos objetos e das pessoas.
A construção da história deve ser plural e não ter um sentido único. No fundo, aquilo a que parece legítimo renunciar é ao exclusivismo de uma perspetiva que elimine a diferença, lançando na sombra o que se não inscreva nessa linha. Na verdade, não se tem memória de maior solidão do que aquela que é instaurada pela indiferenciação, isto é, quando anulamos a alteridade do Outro, fazendo da nossa imagem o reflexo de nós mesmos.
Nesta conformidade, é necessário fazer a história oral da guerra do ultramar, recuperando os testemunhos pessoais dos verdadeiros protagonistas dessa guerra, através das suas próprias memórias. Não se esquece, no entanto, que o indivíduo ao lembrar o tempo vivido, fá-lo sempre de forma seletiva, esquecendo uns factos, excluindo outros, de forma consciente ou inconsciente.
Sendo embora parcial e subjetiva, a memória oral é indispensável para conferir dignidade histórica e «descontaminar» os registos oficiais que relatam os acontecimentos da guerra, utilizando, para o efeito, uma só face da moeda.
Imagem: O GRITO DE EDVARD MUNCH - 1893
Leonor Santos
Sim, o medo imaginado e/ou real que era imanente tornava-se todos os dias numa ameaça iminente. Em verdade, vivíamos num receio permanente de receber más notícias. Sabíamos que o lugar do outro estava marcado pela vulnerabilidade, pelo acidente e pela morte.
Somos o único ser que procura dar forma ao medo, para que o possamos superar. O medo remete para uma reação perante uma ameaça concreta, identificável, pelo menos nos seus contornos mais evidentes. Conhecendo as causas que geram o medo, é possível classificá-lo, catalogá-lo e, progressivamente, racionalizá-lo tendo em vista dissipar a estranheza nele contida.
Quando o medo ultrapassa esses limites, isto é, quando se transforma numa ameaça abstrata ou indefinida, escapa às leis da lógica e coloca o homem à beira do abismo, numa situação de absurdidade, atormentando-o impedindo-o de ter uma vivência de bem-estar, transformando-se o medo em angústia e agonia, assumindo uma amplitude maior e causando uma desconforto emocional muito grande. Um mal que leva o sujeito, muitas vezes, a bater no fundo, esgotando-lhe a vida e calando-lhe a voz. Este silêncio tem a violência expressiva de um grito que primeiro foi recalcado e depois, a pouco e pouco, foi sendo esquecido porque recordar provoca dor.
Os traumas da guerra estão ainda por supurar, o que na opinião de Eduardo Lourenço é "um caso de inconsciência coletiva".
A guerra colonial, enquanto acontecimento histórico, levanta ainda grandes interrogações, nunca foi reintegrado num discurso de saber. Na verdade, à boa maneira portuguesa, o caminho foi obliterar e assumir uma atitude de amnésia, lançando um nevoeiro sobre os factos, atribuindo-lhes um certo ar de «normalização», como se não existissem culpados nem culpa.
Todavia, muito já se escreveu sobre a guerra do ultramar, mas a sua verdadeira história está ainda por fazer. Essa "resistência" coloca-se particularmente ao nível do testemunho, isto é, da deitização do "eu-aqui-agora". De facto, o testemunho faz-se sempre na primeira pessoa, e numa primeira pessoa insubstituível, única, que presenciou e/ou viveu os acontecimentos que constituem o conteúdo do seu depoimento. Daí que a história não seja um mero registo mimético e passivo dos acontecimentos do passado e da imagem dos objetos e das pessoas.
A construção da história deve ser plural e não ter um sentido único. No fundo, aquilo a que parece legítimo renunciar é ao exclusivismo de uma perspetiva que elimine a diferença, lançando na sombra o que se não inscreva nessa linha. Na verdade, não se tem memória de maior solidão do que aquela que é instaurada pela indiferenciação, isto é, quando anulamos a alteridade do Outro, fazendo da nossa imagem o reflexo de nós mesmos.
Nesta conformidade, é necessário fazer a história oral da guerra do ultramar, recuperando os testemunhos pessoais dos verdadeiros protagonistas dessa guerra, através das suas próprias memórias. Não se esquece, no entanto, que o indivíduo ao lembrar o tempo vivido, fá-lo sempre de forma seletiva, esquecendo uns factos, excluindo outros, de forma consciente ou inconsciente.
Sendo embora parcial e subjetiva, a memória oral é indispensável para conferir dignidade histórica e «descontaminar» os registos oficiais que relatam os acontecimentos da guerra, utilizando, para o efeito, uma só face da moeda.
Imagem: O GRITO DE EDVARD MUNCH - 1893
Leonor Santos