-FARDA OU FARDO?-
Decorridos mais de 40 anos, fui sabedor agora das
razões da ida da Companhia de Caçadores 2506 (a minha Companhia) para as
Terras-do-Fim-do-Mundo. A distância, em linha reta, entre a Coutada de Mucusso
e a fronteira do Distrito de Tete, em Moçambique, é mais curta que entre a
Coutada e Luanda, capital de Angola, o que permite avaliar quão longe nos
encontrávamos do nosso Batalhão.
Os hoje Coronéis, na situação de Reforma,
Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, escreveram, há poucos meses, um livro
intitulado ALCORA, que eu li e detenho, onde descrevem pormenorizadamente os
termos do Acordo Secreto Militar então celebrado entre Portugal, a então
racista RAS (República da África do Sul) e a então Rodésia do Sul, colónia
britânica, autoproclamada independente como República da Rodésia – atual
Zimbabwe - cujo Primeiro-Ministro, conservador, branco e racista, era Ian Smith,
Acordo esse cuja existência nunca foi assumida por Portugal, pelo contrário,
sempre foi negada, face à situação anómala da anunciada “independência” da
Rodésia, não reconhecida pela comunidade mundial, por um lado, e, por outro,
pelo isolamento internacional da RAS, decorrente da sua abominável política de Apartheid. Pela dita rebeldia, a
Inglaterra procedeu de imediato a um bloqueio naval às imediações daquele
território, tentando impedir o tráfego de comercialização e abastecimento,
principalmente petróleo. Óbvio que, dum modo subtil, como agora é sabido, a RAS,
quer diretamente quer em conjugação com as então autoridades coloniais
moçambicanas, procuravam atenuar as respetivas consequências com utilização de
meios ferroviários, alguns deles construídos especificamente para isso, em
território moçambicano, mas que, objetivamente, ajudavam ao desenvolvimento da
Província, financiados pela República da África do Sul.
Conforme é público hoje através da divulgação do
ALCORA, essa Rodésia estava autorizada a patrulhar, dentro duma área de
fronteira predeterminada, parte do Distrito de Tete, com meios aéreos, no
princípio, e também terrestres, posteriormente, tendo a FRELIMO reivindicado o
abate de alguns helicópteros, aviões de reconhecimento, e até militares de
infantaria, todos rodesianos, como está atualmente documentado; a RAS, através
da sua Base Aérea fronteiriça do Rundu (na atual Namíbia), fornecia o mesmo
tipo de apoio – mas sem tropas no terreno - no Distrito do Kuando-Kubango, razão
pela qual tinha oficiais de ligação residentes no Cuito Cuanavale. A sua área
de ação ia até ao paralelo desta localidade, no início, alargando-se
posteriormente mais a norte. Essa “ajuda” consubstanciava-se em meios aéreos –
Dakotas, Cessnas e Helicópteros Alouette III, sempre descaracterizados e desarmados
–, para apoio logístico e também para transporte de tropas, sendo que, neste
último caso, obrigatoriamente acompanhados dum Heli-Canhão português, e igualmente
no fornecimento de material de guerra diversificado – parte dele a título de
empréstimo e outro vendido -, desde armamento (principalmente o pesado), munições,
peças sobressalentes de todo o tipo, mormente para Helicópteros e Blindados
Panhard, de viaturas, material de transmissões, à mais diversa gama de que
Portugal então necessitava, de harmonia com o conteúdo da citada obra dos
coronéis referenciados. Inclusive foram feitos empréstimos monetários ao nosso
país no valor de milhões de Rands, parte do qual pago com o petróleo que Angola
já extraía.
A zona de fronteira em Moçambique (Distrito de
Tete) era uma área de infiltração de Tropas de Guerrilha da ZANU (sigla em
inglês de União Nacional Africana do
Zimbabwe), apoiada pela China, e da ZAPU (Zimbabwe African People’s Union), esta apoiado pela então União
Soviética, movimentos que se guerreavam entre si, mas que tinham o objetivo
comum de banir o poder branco autoinstalado e lutar pela independência em
relação ao Reino Unido.
A fronteira sul de Angola, principalmente a
denominada Faixa do Caprivi, era a zona de passagem dos guerrilheiros da SWAPO
(South West Africa People’s Organization)
- cujo apoio logístico naquela área lhes era ministrado pelo MPLA - que lutavam pela expulsão dos
sul-africanos da sua terra namibiana, denominada ainda então oficialmente por
Sudoeste Africano.
A República da África do Sul, ao abrigo desse
Acordo, exigiu de Portugal o reforço, nessa zona-tampão, de mais um Batalhão,
razão por que a minha Companhia foi render, ao tempo, um Grupo de Combate
(Pelotão), possivelmente com deslocação posterior de mais Companhias que
completassem os efetivos pretendidos, situação que desconheço se aconteceu ou
não porque entretanto acabamos a Comissão e o livro citado é omisso nessa
matéria.
Percebi mais concretamente só agora o porquê do
meu batismo de voo ter sido feito num avião militar dos “nossos primos”,
designação eufemística aplicada aos sul-africanos nesta aliança, mas também
apelidados por nós de carcamanhos.
Carlos Jorge Mota
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