-TESTEMUNHO-
Aconteceram situações na guerra colonial, que por serem pouco normais numa guerra, ninguém ousa pensar poderem existir. Para além de serem pouco normais, alguns são de grande gravidade militar segundo o na época existente, Regulamento de Disciplina Militar-RDM. Mas vamos começar antecipando-nos um pouco, ao que de central aconteceu neste testemunho, que agora publico.
Chegados ao Porto de Luanda no dia 21 de Maio de 1969, pelas 22H00 a bordo do Paquete Uíge, seguiu-se o transporte de comboio para o Campo Militar do Grafanil, onde finalmente já depois das 24H00 bivacámos numa espécie de armazéns, sem camas e em alvenaria. Ali permanecemos dois dias, até nos serem distribuídas as instalações definitivas.
Entrada Grafanil, armazéns em alvenaria e instalações definitivas |
Pois bem! É aqui que a estória
começa:
Desde a Escola Preparatória de Quadros ainda no RI 2, que eu e um dado Furriel Miliciano, com maneiras de ser muito ajustadas com as minhas, partilhando muitas vezes as mesmas instalações, refeições etc., para além de grande camaradagem, vínhamos criando e mantendo uma franca amizade. Já era do nosso conhecimento, que o Batalhão teria a missão de na Rede Periférica, defender a cidade de Luanda substituindo o Batalhão de Caçadores 1909.
Assim, ao terceiro dia decidimos conjuntamente, efetuar um patrulhamento de reconhecimento à cidade. No dia seguinte, tomámos como decisão mutua o aluguer a meias de um alojamento na cidade, pelo facto de muitas vezes só ser necessário estar no quartel às 08H00. Assim, alugámos um apartamento no Aparthotel Katekero, sito no Largo Serpa Pinto, próximo da Mutamba no centro da cidade. Também através do nosso Furriel Mec/Auto, que conhecia bem um outro estacionado na Tentativa, possibilitou-nos sempre que possível utilizar em ótimas condições, o aluguer de um Sinca ou um Mitsubishi Colt.
Katekero e o Sinca |
Os dias decorriam com
normalidade entre serviços à Companhia, Rede e Patrulhamentos na área atribuída
ao Batalhão, na periferia de Luanda. Sendo o nosso Furriel, um “namoradeiro” nato
era impossível o amor não acontecer. Claro que confidente que éramos, logo a
Manuela me foi apresentada. Muitas vezes convivíamos a quatro, com uma moça por
ela apresentada, a Isabel. Recordo frequentarmos uma ou outra festa, estando
mais presente uma realizada num apartamento por cima do Arcádia na Avenida
Marginal.
Patrulhamento periferia de Luanda |
Pausa numa operação apeada nos Dembos. Zona do Rio Dange entre a Ponte e F Maria Fernanda |
Finda esta operação, regressámos
a tempo da passagem do ano 1969/70 já em Luanda. A Operação Grande Salto nos
Dembos, norte de Angola já fazia parte da história. Esta Intervenção tinha
chegado ao fim e de novo na Rede Periférica, tínhamos um merecido descanso
psíquico, dado que o receio de um possível contacto com o inimigo era quase nulo.
Os dias voltaram a correr, com a normalidade igual ao período que antecedeu aquela
operação, mas cuja vivência já deixara uma marca profunda. Os dias eram vividos,
um após o outro, a 100%. Desta vez trocamos o Katekero pela Pensão Sírios, que
ficava muito perto da Paris Versailles, Polo Norte e Portugália e onde também
muitas vezes almoçávamos. Pois bem! Excelente altura para acontecer o amor e o
nosso Furriel conheceu a Maria dos Anjos. A Manuela e a Maria dos Anjos colocavam
o nosso militar, a viver entre dois amores.
Estávamos em Abril de 1970 e os
nossos Grupos de Combate estão escalados para o sector A da Rede. Não sei por
que motivo mas, estou no comando desta força. Claro por ser o mais velho, com
maior nota de curso, mas principalmente porque nesse dia, como em muitos outros
acontecia, o Alferes Franco possivelmente estava de férias, ou estava no
comando da Companhia. O Alferes Vasconcelos já não estava connosco. Também não
tenho ideia, quais os graduados que estavam connosco, incluindo o condutor. Lembro,
que até poderia estar presente o nosso 1º. Cabo Herminio Leitão do 1º. Grupo
Combate, que por vezes até fazia sargento de dia à companhia, dado o Grupo só
ter dois furriéis. Na Companhia por esta altura, também tinham sido abatidos ao
efetivo dois ou três furriéis, por transferência disciplinar.
Na Rede, existia uma casa de madeira com seis camas e uma mesa com bancos, que constituía o Posto de Comando-PC. de onde partíamos em ronda auto, por uma picada ladeada por arame farpado com iluminação, verificando a melhor vigilância dos postos de sentinelas. Controlávamos também das 08H00 até às 17H00 a identidade de pessoas apeadas, que por um caminho que existia ao lado do PC, entravam e saíam da Rede Periférica.
Postos de vigia da Rede Periférica |
Nesse dia às 08H00, depois da
continência à Bandeira no Campo Militar do Grafanil e depois de estabelecido o
pessoal por grupos de três com a respectiva senha de aproximação, logo marchámos
em pequena coluna auto, com destino à Rede Periférica. Quando chegámos ao PC, todos
os graduados se apearam, à exceção de um que continuou percorrendo a picada,
parando posto a posto, rendendo o pessoal existente pelo acabado de chegar.
Quando as viaturas chegaram de novo ao PC trazendo o pessoal rendido, os
graduados rendidos nelas montaram, deixando uma delas e levando a que
anteriormente tinha sido utilizada, para abastecer.
Depois de nos levarem o almoço,
na Rede tínhamos sempre refeições quentes, o nosso Furriel Miliciano partiu com
o condutor para a sua ronda pelos postos de vigia. Passado mais ou menos o
tempo necessário para efetuar a ronda, o condutor regressou sem o nosso
Furriel. Sorrindo logo o questionei:
-Então Pá onde deixaste o nosso
Furriel?
-Ficou na estrada do Cacuaco!
-Então?
-O nosso Furriel disse que tinha
conhecimento da situação.
-Bom! Está bem!
Vista do último Posto do Sector A perto Estrada Cacuaco |
Tudo corria bem até que, noite
já entrada, um camarada da torre de vigia próxima do PC, entrou gritando que um
carro civil circulava na Rede. Estando deitado, levantei-me, peguei na Walther,
arma utilizada por nós naquele serviço e todos os presentes saíram. Um táxi
aproximava-se do PC. Corri para ele e
apontando a arma dei ordem para parar onde estava, e para o motorista sair da
viatura. O táxi parou e para meu grande espanto dele saiu a Manuela, a outra
namorada do nosso Furriel, que dirigindo-se a mim exclamou exaltada:
-Quero falar com ele! Onde está!
-Não podes estar aqui e ele não
está.
-Sei que está, já me informei.
-Aqui só estamos nós e fazes o
favor de entrares no táxi e ires embora.
-Só vou embora quando falar com
ele. Tenho quase a certeza que esse malandro me anda a enganar.
-Vá lá entra no táxi e vai
embora. Falas com ele amanhã. Não podes estar aqui. Estás numa zona se
segurança militar, serei obrigado a deter-te.
-Vamos embora minha senhora! Exclamou
o motorista do táxi.
-Tu sabes onde ele está. Vocês
são todos iguais!
-“Tabém!!” Pronto! Vai lá embora.
Logo que esteja com ele, digo que estiveste aqui.
Bem! Consegui que a Manuela
fosse embora e também avisei o motorista do táxi, que não mais se aproximasse
da rede, em especial à noite.
A meia-noite chegou depressa,
assim como o nosso Furriel. A manhã também chegou, assim como a nossa rendição.
Apresentava-se a possibilidade de o dia agora nascido ser de folga. Não tenho
ideia da conversa tida com o nosso Furriel, mas se houve, como sabemos foi
muito curta.
Sobre isto nada foi relatado e se
questionado aos “quesitos disse nada”.
Texto: J Merca
Fotos: Merca, Alegre, Pimenta
Nota: As conversas poderão não ter sido bem estas, mas possivelmente estarão muito perto das verdadeiras.
Essa já me tinhas contado!
ResponderEliminarDescreves aqui muito bem estas peripécias que não chegavam aos altos comandos, nessa altura já tínhamos uma grande proteção de dados.
O que valeu foi o "nosso Furriel" não estar lá, mal sabia a "namorada" que ele estava com a "outra"... senão teria sido o bonito ...
Forte abraço aos dois!
Pois Fernando!
ResponderEliminarTambém já devias andar à volta com os tachos. Aconteceram coisas naquela guerra que parafraseando "não lembra o Diabo".
Aquele Abraço