-FARDA OU FARDO?-
Quando se regressava duma caçada, geralmente à
tardinha, depois da saída pelo amanhecer, formalmente em patrulhamento, o
animal capturado ficava pendurado numa árvore alta junto ao local destinado a
Refeitório, para arrefecimento da sua carne durante a noite e posterior
desmancho logo pela manhã cedo. Óbvio que nessa escuridão quase total, um pouco
aliviada nas luas-cheias, as sentinelas teriam que redobrar a atenção porque os
leões, atraídos pelo cheiro, frequentemente aproximavam-se muito do arame-farpado
e, por vezes, até tocavam nas latas, garrafas e tudo que chocalhasse, lá pendurado
por razões de segurança. O bicho Homem, principalmente quando em grupo, mete
respeito a todo o animal, por mais feroz que ele seja. A Coutada continha dois
pontos de entrada, sem arame, para tráfego das viaturas, mas com pessoal em
vigilância, e ainda a larga chana, em declive mas sempre iluminada com
holofotes, por razões óbvias.
LOCAL REFEITÓRIO PARA O PESSOAL (PROVISÓRIO) |
BÚFALO. FIZ PARTE DESTA CAÇADA |
De noite, como é normal nos
Quartéis, e ali por razões acrescidas, é colocado pessoal de reforço para
vigilância em locais interpostos entre os pontos normais diurnos. Em cada posto
ficavam 3 soldados cujo tempo de sentinela era de duas horas, com descanso de
quatro horas para dormida no chão, e cada um ia acordando o seguinte, até fim
do serviço.
A hora da temperatura mais baixa,
em qualquer parte do planeta, é por volta das 6 horas da manhã, e, talvez já
pelo cansaço e também pelo frio, era frequente, na ronda aos postos, serem
encontrados os três soldados a dormir, portanto, posto sem vigilância. Por
razões decorrentes da minha atividade dentro do Aquartelamento, a minha ronda
era sempre a última, isto é, exatamente a que abrangia aquela terrível hora. E
eu seria, porventura, o Graduado que mais soldados encontrava a dormir. Uma
participação formal dessa ocorrência traria como consequência uma punição
extremamente severa para o infrator, inclusive julgamento em Tribunal Militar,
razão por que, normalmente, em toda as latitudes, as participações, quando
elaboradas, descreviam uma situação de “menor atenção”, nunca “a dormir”,
embora o Comandante, fosse a que nível fosse, percebesse imediatamente o que
realmente tinha acontecido. Na Companhia de Caçadores 2506, que eu tenha
conhecimento, e julgo estar bem informado, nunca se fez qualquer tipo de
participação por tais razões. Para evitar que, estremunhados, pudessem ter uma
reação perigosa, segurávamos as armas dos três soldados, porque desconhecíamos
quem competia estar de vigia, e acordávamo-los. O infrator pedia desculpa e
diziam todos, depois, como que para atenuar os efeitos: “não há problema, aqui não há turras”. Incutíamos-lhes a ideia, que
era verdadeira, que naquele tipo de terreno, um ataque ao quartel se faria
sempre com tiro curvo (de morteiro, por exemplo), pois com tiro direto noturno
os “turras” denunciariam as suas posições.
Como esta situação, pela nossa
avaliação, se poderia tornar perigosa – um dia os guerrilheiros iriam
apanhar-nos à cama e levar-nos “à unha” – decidiu-se, num período em que o
Capitão Santana estava ausente em Luanda, não me lembro já por que razão, e
quem comandava a Companhia era o Madureira, por ser o Alferes com o Curso de
Operações Especiais, logo, com a Nota de Curso mais alta, deliberou-se, como
atrás digo, fazer-se uma simulação de ataque, como sendo verdadeiro, ao
Aquartelamento. Assim se decidiu, assim se fez. À noite, todos os Graduados se
colocaram na Messe, com exceção do 1º Vilares e do Candeias, penso que só estes,
mas foram avisados, e eu, trocando a última ronda pela primeira, depois de
passar o primeiro posto e entre este e o segundo, atiro uma granada ofensiva
para fora do espaldão. Imediatamente, do lado precisamente oposto, o Freitas
procede de igual modo. Bum! Bum! foi ouvido em pontos diametralmente opostos. Gerou-se
logo uma situação confusa, com o pessoal a sair das tendas e a correr para os
abrigos, mas alguns fazendo já fogo, penso que para o ar. Comecei a ouvir uma
fuzilaria atrás de mim e pensei que iria morrer ali com um tiro pelas costas.
Começo a gritar “alto ao fogo!”, “alto ao fogo!”, “só se abre fogo no abrigo e quando se localizar o IN!”.
Foram momentos curtos, de uns 10
minutos, mas muito problemáticos. Fiquei meio surdo do ouvido esquerdo e ainda
hoje carrego essa deficiência nos sons agudos. O homem da Metralhadora Breda,
do lado esquerdo, varreu toda aquela zona, já via até, na escuridão, os turras
a correr na pista …
Para aumentar a credibilidade do
ato, imediatamente saiu um Grupo de Combate para a mata, bateu toda a zona
circundante num raio de cerca de 2 Kms e lá pernoitou.
Por mera e feliz coincidência, no
dia seguinte deslocou-se de avião à Coutada o 2º Comandante do Batalhão a que
estávamos adidos, Major José Maria Barroso Branco Ló, e, pelo Madureira, ainda
na pista, foi-lhe relatado o que havíamos feito. Ele ouviu e aquiesceu, não sei
se por dedução pragmática militar da positividade aplicada ou se por mera condescendência
compreensiva… Essa vinda deu-nos a possibilidade de gerar na mente do Pessoal
de Transmissões a razão da não inclusão no Sitrep
desta ocorrência, o que não diminuiu a sua verosimilhança. Todos os Graduados
fizeram um Pacto de Silêncio sobre o assunto e o compromisso de esta Simulação nunca
ser revelada. Certo, certo, certo, é que nunca mais se apanhou uma sentinela a
dormir!... E eles andavam mesmo por ali, conforme desenvolvimentos
posteriores vieram a demonstrar.
Penso que, agora, passados mais de 40 anos, este compromisso solene pode
ser quebrado, razão por que cito aqui esta façanha, que nos poderia ter saído
muito cara, se as coisas tivessem corrido mal. Mas … era a exigência do momento
… e os 23/24 anos de idade também ajudaram um pouco… E era a Guerra!...
Carlos Jorge Mota
Sem comentários:
Enviar um comentário