-FARDA OU FARDO?-
Almoçados
no Quartel de Cangumbe, com carregamento de víveres e mais munições já efetuado,
eis-nos de novo na picada de retorno ao aquartelamento em bivaque, logo,
temporário. Dispositivo devidamente adequado para vencer os 180 quilómetros, de
intenso stress perante uma eventual
emboscada a todo momento.
CONTRATEMPO POR VIATURA ATASCADA |
Chegámos
ao destino já noite cerrada - pois em África escurece muito cedo -, após umas seis
horas de viagem, com várias paragens pelo meio, pois algumas viaturas atascaram
naquele terreno lodoso face à chuva caída.
Cansados,
pela viagem, pelo esforço despendido nas ações de desatascamento e pelo próprio
stress, a nossa vontade premente era
ir jantar e descansar. O Capitão Santana manda-me chamar e diz-me: “Mota, é preciso descarregar já as viaturas
porque elas vão ser precisas às 5 horas da manhã para saída em Operações!”.
Dirijo-me ao pessoal, ainda aguardando ordem de destroçar, e transmito a
necessidade de momento. Todos imediatamente deram início ao descarregamento das
Berliets, transportando o seu conteúdo para o local respetivo, consoante o tipo
de material em causa. Mas … há sempre um mas em tudo. Um deles, Soldado com
especialidade específica, talvez por entender que só aos Atiradores incumbia
essa tarefa, disse que estava cansado e com fome e que iria comer alguma coisa
e descansar. Disse-lhe que não podia de modo algum abandonar o local sem a
tarefa terminada e que todos nós nos encontrávamos em igual situação e que
todos pretendíamos o mesmo desejado descanso. Mas havia aquela incumbência
prioritária. Desobedecendo às minhas ordens, virou costas e foi para a sua
tenda … enquanto os camaradas cumpriam o estabelecido. Fui no seu encalço,
procurando sensibilizá-lo para o que estava em causa e despertá-lo para a
realidade. Estava eu agora a fazer instintivamente um balanceamento perante uma
insustentável atitude, sob o ponto de vista militar, e uma compreensível causa humana.
Fui treinado para obedecer e fazer-me obedecer, pois ordens são ordens. É essa
a essência da disciplina militar sem a qual não há Exército. Entrei na tenda
com a minha G-3 em bandoleira e ele já havia pousado a sua. Qual é o meu
espanto quando o vejo “crescer” para mim. Fiz-lhe frente e espetei-lhe uma
valente bofetada na face e agarrei-o pela camisa. Ele soltou-se e correu para
pegar na sua arma. Retirei imediatamente a patilha da posição de Segurança da
minha e fiquei expectante. Outros Soldados acorreram logo e imobilizaram-no.
Entrou num choro convulsivo, como uma criança, e agarrou-se a mim a pedir
desculpa. Talvez não tivesse aguentado o stress
sofrido naquelas horas… Disse-lhe: “Sr.
R…, dado o seu atual estado psicológico, fica por mim dispensado de ir
descarregar as viaturas”, e retirei-me. No dia imediato, o Capitão Santana,
sabedor da ocorrência, desconheço por que via, disse-me para apresentar uma
participação, porque queria punir o Soldado. Disse-lhe: “Meu Capitão, desculpe, mas não apresento essa participação” – “É uma ordem que lhe estou a dar!”,
retorquiu de imediato. “Ele já recebeu
uma punição, não vai receber duas pelo mesmo ato. Então vai ter que me punir a
mim, porque não vou apresentar nenhuma participação”, respondi. O assunto
morreu ali. Vim a saber posteriormente que o Capitão Santana teria dito a
alguém que ambos deveríamos ser punidos. Como essa suposta afirmação é
incompatível com o que me ordenou, a ser verdadeira, só teria sustentação pelo
desconhecimento das circunstâncias do sucedido. Desse ato resultou, daí para a
frente, uma amizade muito forte entre o Sr. R… e eu próprio. Hoje, fazendo uma
retrospetiva, e recolocando-me no contexto, penso que a minha atitude não
deixou de ser correta, embora admita que outros possam não a compreender e
interpretá-la até como uma prepotência. Apesar de ele ser daqui da área do
Porto, nunca mais o encontrei, mas tenho a certeza que a nossa amizade se terá
fortalecido e tornado perene. Gostaria de lhe dar um abraço franco e fraterno.
Carlos
Jorge Mota