terça-feira, 22 de julho de 2014

RUMO A UM CAIS EM LISBOA

-FARDA OU FARDO?-
Zarpámos do Funchal cerca de meia-noite. Passámos, portanto, a parte diurna desse dia na Ilha pois havíamos atracado logo de manhãzinha. Vejo o navio a começar a navegar com a proa apontada para um pouco antes do bico do monte frente à cidade. Fico assustado. Será que vamos bater ali? Questiono um tripulante perante o meu alarme. Ele, tranquilamente, respondeu-me: “É que o navio está apontado para ali mas, com a corrente, ele vai navegando de lado e iremos passar bastante para lá do morro”. Fiquei a saber naquela altura que, tal como nos aviões, que sofrem a influência dos ventos (mas aí eu tinha conhecimento), há também, na navegação marítima, uma diferença entre Rota e Rumo. Entrámos no alto-mar, azimute de Lisboa na bússola, com viagem prevista para cerca de 36 horas. Durmo tranquilo, ainda teríamos mais duas noites e um dia de navegação. Como de manhã estava um tempo ótimo, aproveito para me refastelar um pouco e gozar os últimos momentos do Vera Cruz.


A última noite foi passada em grande desassossego uma vez que, pela manhã desse dia 1 de julho de 1971, atingiríamos o Tejo. Mas, para nosso espanto, o navio parou no meio duma neblina cerradíssima, que nada víamos num raio de 20 metros. Soa o seu apito estridente e responde um outro mais fraquinho: era o da Lancha dos Pilotos. Estávamos junto ao Farol do Bugio, viemos depois a perceber quando o sol clareou, dissipado o nevoeiro. Sobe para bordo o Piloto do Porto da Barra de Lisboa … e o navio começa a subir o Tejo, devagarinho. Passa sob a Ponte, então chamada de Salazar, agora de 25 de Abril, e começa-se a vislumbrar uma multidão no Cais de Alcântara e não no da Rocha de Conde Óbidos, donde tínhamos partido em 1969, a acenar, com lenços, chapéus e tudo que dava para abanar. Acostámos, em manobra lenta e vagarosa, e alguma multidão entra em transe. Gritos de alegria vindos de fora, acenos feitos de dentro. Minutos especiais em que disciplina rígida tem que imperar, sob pena de perca do controlo da situação. A compreensível ânsia é grande mas tem haver rigor no critério de saída. Chega a minha vez. Desço o portaló e encontro logo de imediato, de Serviço de Prevenção de Enfermagem ao navio, o que viria a ser o meu cunhado António, mais tarde mobilizado para Moçambique. É o meu primeiro abraço. Rapidamente descubro os meus familiares e a minha namorada. Ficará perene na minha memória esse esperado momento do reencontro ansiado.

“Vamos embora, tenho ali o carro!”, diz o meu cunhado Amorim (já falecido). “Não posso. Temos que ir enquadrar o pessoal até ao R.I. 2, em Abrantes (nossa Unidade Mobilizadora) para fazer o chamado espólio do fardamento, tirar uma Radiografia Pulmonar e receber a Licença Registada por 30 dias e ainda aguardar pela bagagem de porão!”. Assim se procedeu, mas eles, os meus familiares, levaram o carro para Abrantes para me aguardar. Chegámos à Unidade, transportados em Camiões Militares desde a Estação de Abrantes, onde findou a sua marcha o Comboio Especial. Portanto, missão cumprida. Nós, Milicianos, não fizemos espólio. O fardamento era nosso, pago por nós, com dinheiro abonado pelo Exército mas descontado posteriormente no soldo.















É-me feita uma Radiografia Pulmonar e é-me entregue a Licença Registada por 30 dias, período durante o qual nos encontrávamos ainda no Ativo. Findo esse prazo, entraríamos na chamada Disponibilidade. Concluo logo que será melhor voltar ao RI 2 mais tarde para levantar a bagagem de porão. Entro no carro e, após umas horas de compreensível conversa emocionada, chego, finalmente, à minha rica cidade do Porto.

Adeus às Armas! Fim da Guerra! Mas será que foi mesmo o fim da Guerra? NÃO, NÃO FOI! Constatamos todos nós, Combatentes, isso, hoje. Ela somente hibernou … as nossas cabeças apenas entraram num período de nojo … Sim, porque a Guerra é mesmo um nojo!…

Carlos Jorge Mota

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