segunda-feira, 30 de junho de 2014

XL - EMBARQUE À VISTA

- FARDA OU FARDO?-
Chegada ao Porto de Luanda do Navio Vera Cruz, com tropas frescas a bordo para rendição de outras, prevista para 20 de junho, de manhã. Uns dias antes dessa data, começa a nossa entrega do Armamento, Munições, das Viaturas, do material de Transmissões, enfim de tudo que nos fora confiado para o desempenho da missão de 24 meses, mais o “mata-bicho”. E as deslocações para as Chefias dos respetivos Serviços, na baixa de Luanda, se sucedem, no seguimento das diligências por mim iniciadas e de cuja incumbência fora encarregado, não obstante permanecer na Província, por mais um bom número de dias razoável, uma Comissão Liquidatária, como era normal, na esperança que tudo estivesse em ordem e nenhuma anormalidade fosse detetada e impeditiva de quitação. E a azáfama do encaixotamento logo se inicia. Só se ouve martelar, por todo o lado do Campo Militar do Grafanil onde nos encontrávamos, pregando caixotes e mais caixotes, para embarque no porão. Eu trouxe três, com o meu nome e posto e a designação da Companhia, tudo bem visível do exterior, pintado a tinta branca, para levantamento em Abrantes. Uma correria em busca de tábuas, improvisando-se tudo que servia para esse desiderato. Entretanto, somos sabedores que o navio se atrasou 12 horas. Chegaria, portanto, só à noite, o que, em termos práticos para nós, representaria um dia, pois nessa noite de 21 ele estaria ocupado nas operações de descarga, quer do pessoal embarcado quer do conteúdo dos seus porões quer ainda em reabastecimento. Vim a saber depois a razão desse atraso. Ao largo do Golfo da Guiné, durante a exibição dum filme, um Soldado, pendurado nos cabos do navio (em linguagem marítima cordas são cabos), desequilibrou-se e caiu à água. O Vera Cruz parou os seus motores e permaneceu na zona cerca de meio dia na esperança de recuperar o rapaz, vivo ou morto, mas, e infelizmente, sem resultados positivos. O navio retoma a marcha e chega atrasado a Luanda. As implicações do retardamento irão surgir no regresso, connosco a bordo.
VERA CRUZ
NUNCA IMAGINARIA QUE CERCA DE 6 MESES ANTES ELE ESTEVE PRESTES
A IR AO FUNDO COM 3 800 HOMENS A BORDO, VINDO DE MOÇAMBIQUE AO
LARGO DE EAST LONDON ( R A S )




PREPARATIVOS PARA O EMBARQUE



Da minha Companhia, o Fernando Temudo resolveu ficar a residir em Angola, bem como mais, pelo menos, dois Soldados. Das outras Companhias houve igualmente pessoal que ficou por lá, razão por que todos entraram de licença registada à data da saída do navio. Não quiseram, todavia, deixar de nos vir dar um abraço. Sabe-se lá se nos voltaremos a encontrar um dia?
E CHEGA A ORDEM DE EMBARQUE

Como alguns Camaradas tinham lá família e outros tinham já feito namoritos, com promessa de voltar, houve choros e ranger de dentes, fora do navio, que aumentaram de intensidade, até com algum histerismo, quando o pessoal passou para bordo, atingindo o apogeu com o apito estridente do barco, em jeito de despedida. Cerca das 10 horas da noite do dia 21 de junho de 1971 o Vera Cruz zarpa de Luanda, rumo a Lisboa. Curioso foi o súbito e estranho sentimento que se apoderou de mim (provavelmente generalizado a todos): olhar para aquela terra onde passei 26 meses, onde senti algumas alegrias, muita saudade e tristezas, por vezes fome e sede, momentos de desespero … e começar a emergir uma nostalgia inesperada, num misto e contraditório pensamento – colocar-me mentalmente no destino mas observando embevecido esta linda terra que vou agora deixar …

Carlos Jorge Mota

quarta-feira, 25 de junho de 2014

OUTROS CONVÍVIOS

-NOTÍCIA-
Postamos hoje com algum atraso os PE da passada sexta-feira dia 6, assim como os também passados sábados dias 7 e 14 do corrente mês, publicados no CM.
JM
PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
06JUN2014

PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
07JUNI2014

PONTO DE ENCONTRO

CORREIO DA MANHÃ
14JUN2014

sexta-feira, 13 de junho de 2014

XXXIX - O ROSTO DO COLONIALISMO

-FARDA OU FARDO?-
Ao segundo dia em Luanda, já pela noite, chegam todas as Companhias do Batalhão, em coluna, depois da viagem de Comboio entre o Luso e Nova Lisboa, em que transportaram também as viaturas. O local de acantonamento foi no Campo do Grafanil em cujas instalações se colocavam as tropas em trânsito, as vindas da Metrópole e com destino ao Mato e vice-versa.

Sabíamos já qual a data da chegada do Vera Cruz, navio que nos transportaria para Lisboa, mas ela só teria lugar daí a uns dias. Entretanto, como Tropa não pode estar parada, é dos livros, cria ócio e dá mau exemplo aos outros militares, foram-nos atribuídas missões a empreender na própria cidade de Luanda. Eram de vário tipo, por rotação de Companhias: serviço à Rede, em que tínhamos já estado à chegada à R.M.A e durante cerca de 3 meses, e patrulhamento aos Musseques, isto é, ação de policiamento.

MUSSEQUE EM LUANDA
Atendendo a que eu estava interessado em conhecer essa tarefa de polícia, e já não teria outra oportunidade pela proximidade da data do embarque, perguntei ao Fernando Temudo se ele via algum inconveniente em eu o acompanhar numa sua saída, com ele a comandar, obviamente. Ele acedeu e eu então requisitei uma Pistola-Metralhadora FBP (Fábrica de Braço de Prata) para me incorporar no grupo, uma vez que só as Praças transportavam G-3. Ele levou uma Pistola Walther. Embrenhados nos Musseques, a missão consistia em pedir identificação, duma forma mais ou menos aleatória, aos transeuntes. Uns paravam, mostravam a documentação e eram mandados em paz; outros, indocumentados, subiam para um Unimogue, vazio para o efeito - só com o condutor -, para entrega posterior à PSP; e outros, logo que nos avistavam, desatavam numa correria louca, em fuga. O Temudo chegou a mandar uns tiros para o ar, mas sem resultado.

Uma vez a viatura cheia, deslocámo-nos à Esquadra da PSP, julgo que a 1ª, e entregámos os cidadãos para os devidos efeitos: identificação, morada, profissão e averiguações de atividade eventualmente ilícita, pensava eu. A Esquadra era uma casa tipo habitação, com Portão de Jardim, um corredor e depois, percorridos uns 15 metros, a Porta de Entrada. Mas … eis que, logo à passagem do Portão, onde estava uma Sentinela, verifico que, à medida que os cidadãos desciam e penetravam nesse corredor, sem nada lhes ser perguntado, começavam a levar pontapés, estalos, socos. Eles procuravam proteger-se das agressões, mas infrutiferamente. Lá dentro, na sala, depois de passada a Porta, era o chicote que entrava em ação. Pasmado com aquilo, digo ao Temudo: “eh pá, isto é assim? Eles (os da Polícia) já te assinaram a Guia de Entrega? Os homens estão ainda sob a tua custódia! Que merda é esta?”. O Temudo responde-me: “oh pá, temos o barco à nossa espera, deixa lá isso, não levantes problemas!”. Nesse momento senti uma revolta interior, vi ali o Rosto do Colonialismo. Suponho que todos os Guardas seriam gente do recrutamento local, portanto, com anos na Polícia de lá. Um metropolitano jamais faria aquilo. Percebi, então, a razão por que muitos dos cidadãos negros, avistando-nos, fugiam a sete pés. Já teriam passado por aquela situação … Tentei perceber, pelo tempo de permanência na Esquadra, o que lhes faziam depois. Após algumas perguntas, mandavam-nos embora … com porrada já carregada no lombo. Procedimento desumano e que contrariava toda a filosofia reinante de interligação racial apregoada. Fariam o mesmo se os homens fossem brancos? Não fariam, com toda a certeza!.. Naquele momento percebi que todo o meu esforço ao longo daqueles 26 meses não tinha razão de ser. Eu tinha sido enganado.

Como eu transportava uma FBP, arma perigosa se mal manuseada, pela eventual mudança brusca, aleatória, da posição da culatra que ela própria faz, um Guarda alertou-me para a posição da minha, dizendo-me: “cuidado, o senhor já viu como traz a arma?”. Disse-lhe: “Já, fique tranquilo, que eu sei o que estou a fazer!”.-“Como posso ficar descansado? Ela pode disparar sozinha a todo o momento!”, disse ele. Respondi-lhe: “você acha que eu iria agora correr riscos?”… e tiro o carregador, vazio … e mostro-lho. “O cheio, está aqui, no bolso” e bato no bolso lateral da calça da farda do camuflado. “Ah, já estava a ver, estava a ficar com medo”, retorquiu ele, aliviado.

Carlos Jorge Mota

quarta-feira, 11 de junho de 2014

XXXVIII - 8 DE MAIO DE 1971 - ÚNICA BEBEDEIRA NA VIDA

-FARDA OU FARDO?-
Finalmente, o almejado dia chegou: 8 de maio de 1971, data do fim da Comissão. Daí para a frente entraríamos no “mata-bicho” (designação que em Angola tinha dois sentidos – agora só tem um: para os civis significava “Pequeno-Almoço”; para os militares era o tempo entre a data do fim da Comissão e a do Embarque de regresso).  Vou ao Sacassanje encontrar-me com o pessoal que estava nesse momento na picada, para festejo geral. Não bebi muito mas a mistura do que me deram, em confraternização, arrasou comigo: apanhei uma bebedeira que pensei que ia morrer. Nunca tinha tido tal experiência, apesar de habitualmente beber todo o tipo de álcool, só que moderadamente e sem misturas. Tenho consciência que fiz uma figura patética, não fosse o compreensível momento, seria ridícula até e mesmo reprovável. Sei que os Soldados riam-se do que eu fazia e do que eu dizia. Mas também não fui o único.

ENTRE O PESSOAL DE TRANSMISSÕES
ENTRE O COIMBRA (DE MANTA), O HONORATO E O  RIACHOS (JÁ DESAPARECIDO)

Todo o pessoal de todas as Companhias do Batalhão, nos respetivos locais onde se encontravam, festejaram dum modo especial aquele desejado dia. No regresso ao Luso, no jipe com o Capitão Santana ao volante, eu ria, cantava, vociferava. Ele manteve-se sempre calmo e completamente sóbrio, talvez por indispensável precaução e exemplo de recato, e teve a amabilidade de me transportar a casa, até porque seria muito perigoso para mim, sob o ponto de vista disciplinar, ser topado na rua naquele estado, fardado e armado de G-3. Deitei-me, mas não conseguia permanecer na cama pois tinha a sensação de que me encontrava num barco a afundar. Foi uma noite horrível, sempre a correr para o Quarto-de-Banho, “a lançar a carga ao mar”. Os outros riam-se, mas também só estavam um pouco melhor do que eu.

Dia seguinte, manhã complicada, pois a nossa Guerra não tinha ainda acabado. Era preciso ultrapassar a situação para dar seguimento às tarefas. Dois banhos, um em cima do outro. E, pelo continuar das horas, a “coisa” lá foi melhorando …

Na semana imediata, talvez porque eles soubessem que estávamos no fim da Comissão e queriam afirmar-se, como despedida, montaram uma emboscada em plena zona do Sacassanje, nossa zona de proteção às obras. O Ajax, condutor da Berliet que seguia à testa da coluna, aguentou ao volante os momentos de fogo e conseguiu inverter a marcha para uma melhor posição, enquanto o Luís Brandão de Macedo, em pé e de peito descoberto, metralhava a zona onde eles se encontrariam. Debandaram rapidamente, tipo “bate e foge”. 

Nada mais de assinalável e que mereça especial referência aconteceu até ao dia em que recebemos ordem de regresso a Luanda.

Como o Fernandito, portuense colocado no Comando de Setor com quem havia feito amizade na Cristália, e já atrás citado, me havia dito que talvez me conseguisse uma passagem de avião militar para Luanda, coloco a questão ao Capitão Santana no sentido de auscultar o seu consentimento, uma vez que a minha presença no Comboio e nas viaturas, para enquadramento do meu pessoal, poderia ser dispensada. Aquiesceu e disse-me que até seria bom porque, dessa forma, eu começaria de imediato a tratar duma série de diligências a fazer junto das respetivas Chefias dos vários Serviços, em Luanda: de Intendência, de Material, de Armamento, de Transmissões, etc.


AEROPORTO DO LUSO, ONDE O CHEMBENE SE DESLOCOU NUM PV2,
PARA SE ENCONTRAR COMIGO E ONDE EMBARQUEI NO NORD-ATLAS

Bilhete na mão, conseguido pelo Fernando, aí estou eu a entrar para um Nord-Atlas, da FAP, conhecido como Barriga de Ginguba, que me proporcionou uma viagem de cerca de três horas. Aterro em Luanda, na zona militar do Aeroporto. Vou para casa dos tios do Fontes, que, entretanto, já tinha acabado a Comissão e regressado à Metrópole. Durmo lá e, no seguinte, começo a tratar dos assuntos incumbidos.

Carlos Jorge Mota

terça-feira, 10 de junho de 2014

XXXVII - CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

-FARDA OU FARDO?-
Não demoraram 15 minutos quando o Capitão Santana me procura e me diz: “eh pá, oh Mota, você tinha razão. Os Dragões rebelaram-se e agora sobrou para nós! Vamos começar a ‘alinhar’ nas escoltas para o Dala e Buçaco, que estavam a cargo deles. Acabei agora de receber um telefonema do Comando de Setor. Começamos já amanhã”.
QUARTEL DOS DRAGÕES - LUSO
Venho logo depois a saber o que tinha ocorrido: o Soldado abatido estava de serviço, drogado com liamba, o que era muito comum com os nativos naquela altura, e dizia que se ia embora para casa. O Furriel dizia-lhe: “pá, não podes sair da Unidade, só amanhã, depois do Render da Parada. Conheces as regras militares. Eu não te posso deixar sair”. O rapaz, talvez toldado pela dopagem, resolveu sair mesmo. E vai daí, o Furriel resolveu levar o caso até ao extremo, servindo-se do que o Regulamento Militar determina e lhe permite. Soube, já muito mais tarde, em Luanda, que ele tinha sido julgado em Tribunal Militar e … foi absolvido.

Mas, no entretanto, as coisas complicaram-se dentro da Unidade. Os Soldados, nativos na sua quase totalidade, não tinham arma distribuída. E foi o que salvou a situação. Levantavam-na na Arrecadação de Material de Guerra do Quartel sempre que saíam para um serviço. A rajada de arma pesada que eu tinha ouvido quando encostado ao muro foi disparada por um 2º Sargento, branco, para evitar que eles concretizassem uma tentativa de assalto a essa arrecadação, pois diziam que iam matar todos os Graduados do Quartel. Acresce que esse rapaz tinha um irmão também lá colocado, o que ajudava a aumentar a efervescência. O Furriel teve que fugir pela parte de trás, saltando o muro junto ao Campo de Futebol (que é visível na fotografia).

O Aquartelamento foi entretanto ocupado pelos Comandos, o pessoal foi todo transferido de imediato e a Unidade foi reativada com tropa fresca, provinda de outros pontos da RMA.

À tardinha, ao chegar a “minha” casa, contígua ao edifício do Comando, depara-se-me um espetáculo deprimente, pela impotência da multidão “fardada” que pedia “justiça” junto do Brigadeiro Bettencourt Rodrigues e a postura militarista deste de só receber uma Delegação que se encontrasse mínima e regularmente composta sob o ponto de vista de fardamento.

E, no dia seguinte, conforme ordem recebida, uma Secção da nossa Companhia começou a ocupar-se das escoltas na estrada para Henrique de Carvalho, até ao Buçaco, via Dala, tarefa que permaneceu durante quase um mês.

Nessa mesma estrada, segundo se falava na altura, e durante esse período, terá sido a primeira vez que uma Mina Anti-Carro foi acionada numa via asfaltada. Eles cortaram um pedaço certinho do alcatrão, colocaram lá a Mina e taparam de novo, com disfarce não detetável.

Um Camarada que passou à disponibilidade em Angola, não regressando, portanto, à Metrópole, conviveu algum tempo, por razões de namoro com duas irmãs, com o moço envolvido nesse incidente. Penso que um ato desses, feito a quente, deverá marcar indelevelmente um indivíduo para toda a vida.

Carlos Jorge Mota

segunda-feira, 9 de junho de 2014

XXXVI - ESTARIA EU A VER UMA FILMAGEM?

-FARDA OU FARDO?-
Numa das minhas frequentes idas à Manutenção Militar, saio da BTR com um Unimogue e, logo à entrada da cidade do Luso, encontro um GE, fardado, amputado duma perna, pedindo boleia à primeira viatura militar que surgisse. Dei instruções ao Condutor para parar, pergunto ao homem para onde quer ir e ele diz-me que tem uma Consulta no Hospital Militar. Apeio-me do Unimogue (veículo destapado) e ajudo-o a subir, por óbvia dificuldade física dele. Deixámo-lo no Hospital. Entretanto começa a cair uma chuva miudinha. Digo ao Condutor: “eh pá, vamo-nos abrigar um bocado, talvez o melhor local seja junto ao muro do Quartel dos Dragões, que sempre nos protege um pouco!”, e para lá nos dirigimos. Esta Unidade pertence à guarnição normal da cidade e o seu pessoal era constituído, na sua quase totalidade, por militares do Recrutamento da própria RMA, inclusive Graduados.

CHEGADA DUMA EVACUAÇÃO  AO HOSPITAL MILITAR
Encostados ao muro, com a viatura estacionada na rua, aguardamos que a chuva passe. De repente, vejo um Furriel, branco, ostentando uma braçadeira, pois estava de serviço à Unidade, falar com a Sentinela, também branco, e armado duma Espingarda FN. Pega nessa arma, ajoelha e aponta para um Soldado negro que tinha saído da Porta-de-Armas e se dirigia para um carro velho parado frente ao portão, e … PUM, dispara para as costas dele. Compreendi, nessa altura, o significado literal do “esticar o pernil”, sem pretender gracejar com a expressão, mas o que é certo é que vejo o rapaz cair de bruços, com uma perna ligeiramente encolhida e começar a espernear esse membro até se imobilizar por completo. Meu raciocínio instantâneo: “estão a filmar atrás do portão e o moço vai já levantar-se, pois trata-se de uma simulação para alguma finalidade que ignoro ”. Mas eis que ouço de repente um burburinho provindo do Quartel, vejo o Oficial-de-Dia deslocar-se junto do moço, tira a boina da cabeça e abana-o como se ela  fosse um leque. Volta para dentro. Nada vislumbro para o interior, pois o muro o impede, só vejo a Sentinela, que continua no seu posto, e o Furriel já tinha ido para dentro. O burburinho aumenta de intensidade e ouço repentinamente uma rajada de Metralhadora Pesada, que percebi logo ter sido feita para o ar. Troco um olhar interrogativo com o Condutor e digo: “vamo-nos embora já daqui senão ainda levamos um tiro e sem sabermos porquê!”. Retomámos o nosso destino. Passada a linha do Caminho de Ferro do CFB, começam a cruzar-se connosco Berliets, Unimogues 414 (o que chamávamos Burro do Mato, que eram os nossos) e Unimogues 404 (estes mais largos e movidos a motor a gasolina), viaturas estas carregadas de pessoal dos Comandos (cujo Aquartelamento ficava junto à Manutenção Militar) vestidos dum modo completamente desajustado: quico camuflado e camisa verde, calças verdes e camisa camuflada, botas de lona e calções verdes, enfim, modo revelador de saída emergente. Após resolver o assunto que lá me levou, volto da Manutenção Militar, reentro na cidade e vejo tropa em todas as esquinas, fortemente armada. Pergunto o que se passa e é-me transmitido então que os Dragões se rebelaram.

Chego à BTR e narro ao Capitão Santana o que presenciei. Diz logo ele, no seu modo meio brincalhão “Oh Mota, você vê cada filme!... Vá meter essa peta a outro!”

Carlos Jorge Mota

domingo, 8 de junho de 2014

XXXV - ESTOU DE FÉRIAS... E PORQUE NÃO IR À CAPITAL?

-FARDA OU FARDO?-
“Meu Capitão: estou de férias. Já que estamos na Lunda, por que não vamos conhecer Henrique de Carvalho? Arranjo onde pernoitarmos pois está lá na Base da Força Aérea um amigo íntimo meu”. “’Bora’, pá, vamos nessa, já que chegámos aqui!”, disse logo. Metemo-nos à estrada, que o trajeto era bom e livre de perigos.
FOTO TIRADA PELO PIRES SANTANA
FOTO TIRADA PELO PIRES SANTANA








Demorámos ainda uma hora e meia a chegar, pois parámos pelo caminho para reequilibrar fluidos e descansar um pouco.


Chegados à Base, procuro o meu amigo Chembene, que conhecia desde há uns 6 anos atrás, moçambicano, que seguiu a carreira na nossa Força Aérea e atingiu o posto de 1º Sargento. Esteve presente no meu casamento, após o fim da Comissão de ambos. Foi ao Luso, aproveitando um voo dum PV2, para me retribuir a visita. Aquando da independência de Moçambique optou pela nacionalidade moçambicana pelo que teve de se desligar da FAP. Ingressou nos quadros da LAM – Linhas Aéreas Moçambicanas, e era mecânico de bordo. Está já reformado, vivendo em Maputo. Falamos assiduamente ao telefone, nem que seja para me chatear a cabeça por causa do seu Benfica. Mas, para azar seu, tem um filho que é … portista.

O AUTOR E O CHEMBENE
AUTOR, CAP SANTANA E O PIRES SANTANA











Dia seguinte, finda a visita, metemo-nos à estrada e fizemos o percurso inverso, devidamente enquadrados na coluna quando atingimos o local apropriado e exigido para o efeito.

Carlos Jorge Mota

sexta-feira, 6 de junho de 2014

XXXIV - CORNETEIRO DESAFINADO... OU DESENFIADO?

-FARDA OU FARDO?-
Em pleno mês de fevereiro de 1971, encontrando-me eu de férias, vejo o Capitão Santana parar o “seu” jipe à porta da “minha” casa. Entrou, cumprimentou e disse-me: “Mota, preciso de um favor seu”. “É de caráter militar ou particular?, perguntei. “Se for militar, atenção que eu estou de férias; se for particular, faça o favor de dizer do que se trata!” digo eu. “É um misto das duas coisas”, retorquiu logo. “Você sabe que o Silva (Cabo Corneteiro) se perdeu de amores com uma mulatinha e eu sei onde ele está, fui informado. Está lá para a Lunda mas eu tenho a indicação do local exato. Vamos buscá-lo antes que passe o tempo de o gajo ser considerado desertor. Estamos já quase no fim da Comissão e eu não quero ver um homem meu com a sua vida estragada por causa dum caso destes”.

Dia seguinte, estou de camuflado vestido e de G-3 na mão, e, à hora marcada, o Capitão Santana pára o jipe. Vem acompanhado de outro Santana, mas do Pires Santana, Alferes do Recrutamento Local, que veio substituir um outro que, tendo vindo de férias à então Metrópole, deu baixa ao Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, e não mais regressou ao nosso seio.

A estrada para o Distrito da Lunda (agora há duas Lundas, foi feita divisão), cuja capital é Henrique de Carvalho (denominada atualmente Saurimo), é alcatroada, mas entre o Luso e a localidade do Buçaco era uma área de forte ação inimiga razão por que, entre aqueles dois locais, obrigatoriamente toda a viatura civil tinha que fazer o trajeto em coluna devidamente escoltada por militares.

Esperámos pela sua formação e o Capitão Santana falou com o Comandante da Escolta, um Furriel, e transmitiu-lhe que o jipe se iria incorporar na coluna mas que viajávamos por nossa conta e risco.
ESTRADA LUSO/HENRIQUE DE CARVALHO
BUÇACO-COINCIDÊNCIA,NOME DA RUA DA
CASA DOS MEUS PAIS












Chegados a Dala, pernoitámos no quartel de lá depois do Cap. Santana ter falado ao Oficial-de-Dia à Unidade. O Capitão teve aposento melhorado, pois eu e o Pires Santana deitámo-nos numa arrecadação e dormimos no saco-cama que levávamos, numa completa escuridão, e com a arma ao lado. De noite, sou acordado com uma voz a gritar, ao meu lado: “eles aí vêm, eles aí vêm!” Apuro o ouvido e nada de anormal ouço. Acordo-o então com uma cotovelada, pois o Pires Santana estava a sonhar alto …

Já que ali estávamos, disse ao Capitão Santana: “meu Capitão, por que não vamos ver as famosas Quedas do Dala? É uma oportunidade única!”. “Vamos lá, pá!”, disse logo.











Fomos ao quimbo (musseque) que o Capitão tinha referenciado, não encontrámos o Silva, porque ele tinha saído de momento. Deixámos recado … e ele apareceu na BTR ao terceiro dia. Levou um raspanete e ficou com um castigo leve, sem registo escrito. Agradeceu a nossa atenção dum modo que me emocionou.                   

Nota: “Desenfiado”, em gíria militar, significa “ausente sem autorização”.

Carlos Jorge Mota

quinta-feira, 5 de junho de 2014

OUTROS CONVÍVIOS

-NOTÍCIA-
Com um pequeno atraso, voltamos a postar os PE publicados no CM, na sexta-feira e sábado da passada semana.

O PE do dia 31 de Maio tem para a nossa Companhia uma particular curiosidade, pelo facto de anunciar encontros de militares que incorporaram batalhões bem nossos conhecidos.

Refiro-me ao Batalhão de Cavalaria 2889 o "ÁS de Espadas" e o Batalhão de Caçadores 2873. Ambos foram contemporâneos do Batalhão de Caçadores 2872, o "Pop", em Angola nos anos de 1969 a 1971. O "Ás de Espadas" esteve em Cangamba e Catete. Por sua vez o Batalhão 2873, esteve em Aldeia, Zala, Dembos e passando também pelo leste terminou a comissão no Cacuaco.

Tive a oportunidade e o prazer de falar com um dos organizadores do Bat 2873, o Firmino Antunes (Canina), combatente da Companhia de Caçadores 2507 e com o qual recordando locais mantive uma conversa muito interessante.
JM
PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
30MAI2014

PONTO DE ENCONTRO
CORREIO DA MANHÃ
31MAI2014

quarta-feira, 4 de junho de 2014

XXXIII - NOTÍCIA ARRASADORA

-FARDA OU FARDO?-
O nosso 1º Grupo de Combate, comandado pelo Madureira, foi destacado para uma permanência alongada na Vila de Teixeira de Sousa, junto à fronteira com o Zaire, e términus, em território angolano, da linha-férrea do CFB – Caminho de Ferro de Benguela.

No dia 31 de outubro de 1970, portanto, a pouco mais de seis meses da data do fim da Comissão, recebemos, na Companhia, uma notícia arrasadora: um Soldado nosso tinha morrido. “Quem é?”, pergunta generalizada. “É o Coradinho!”, correu célere a triste e abaladora informação.  Não resistiu à pressão acumulada, foi logo posto a circular. Foi um choque terrível em todos os Camaradas.
O CORADINHO, NO LUENGUE
De seu nome Joaquim dos Santos Jesus Rodrigues, do Bombarral, em cujo Cemitério jaz, homem calado, disciplinado e de uma educação invulgar, muito afável no trato. Inúmeras vezes pronunciei, em voz alta, a sua verdadeira “graça”, na distribuição do Correio, em formatura.

A população da Vila de Teixeira de Sousa apareceu em massa no seu funeral local, em sua homenagem. Posteriormente o corpo seguiu o seu destino para Luanda rumo à terra que o viu nascer. Repousa em paz, Grande Camarada! Foi e é o desejo dos que contigo conviveram!
TEIXEIRA DE SOUSA, AGORA DENOMINADA LUAU
Chegados os seus pertences à BTR, sede improvisada da Companhia, houve necessidade de elaborar o respetivo Auto a fim de o seu espólio ser remetido para a família. Tarefa objeto de muita reflexão e de muita apreensão, pois nenhum de nós consegue avaliar, à partida, o seu limite de resistência física e, principalmente, psicológica.

Todos ficámos muito combalidos pela partida do nosso Companheiro desta Viagem de Juventude … mas a Guerra, a nossa Guerra, tinha que continuar porque, para o dia 8 de maio de 1971, ainda faltavam 189 dias …

Carlos Jorge Mota

terça-feira, 3 de junho de 2014

XXXII - QUOTIDIANO NO LUSO

-FARDA OU FARDO?-
Na BTR a vida quotidiana da Companhia era de mera rotina dum Aquartelamento e de lá saía um Grupo de Combate para a localidade de Sacassanje, que se revezava diariamente, a fim de dar proteção às obras em curso, consubstanciada naquilo que, em linguagem militar, se define como de Segurança Imediata e de Segurança Próxima, isto é, posicionamento, respetivamente, junto aos civis da Tecnil (Empresa Adjudicatária) e na mata envolvente.


Às outras Companhias, sediadas nos pontos já citados, era-lhes atribuída idêntica missão, acrescida de, através de um ou mais Grupos de Combate, entrar em Operações, nomeadamente na zona do Rio Lungué-Bungo, onde existia um Destacamento de Fuzileiros Navais, e fazer escoltas a MVL’s destinados à Vila de Gago Coutinho, que envolviam alguma perigosidade face às frequentes minas colocadas pelo IN na picada.

Findo o serviço diário e dos dias de alternância na mata vínhamos para a casa alugada e matávamos o tempo a ler, ouvir música e a conversar, mas antes disso passávamos pela Pastelaria Cristália, ex-libris do Luso, cujos donos eram provenientes do Porto, de Campanhã, onde lanchávamos e fazíamos novas amizades com camaradas doutras Unidades. Aí conheci o Cândido Rodrigues, de Viana do Castelo, que posteriormente se licenciou, penso que em Direito, e o Fernandinho e o Jorge, ambos do Porto, colocados no Comando da ZIL, e que, para o regresso a Luanda, o primeiro me foi muito útil. Finda a Comissão de todos (eles tinham um ano a menos do que eu em Angola) encontrávamo-nos amiúde na nossa cidade. Inclusive o Jorge casou com uma moça minha conhecida, mas, infelizmente, ficou viúvo muito novo.

O Clube Ferrovia era também local de presença assídua, nomeadamente para as festas que organizavam e cuja entrada nos facilitavam, apesar de não sermos sócios, mas obrigatoriamente trajando à civil. E o Cinema Luena era local obrigatório de permanência, onde exibia filmes de bastante interesse para a época.

LINDO JARDIM NO CENTRO DA CIDADE


CLUBE FERROVIA











Também na Pastelaria Cristália conheci dois Alferes Milicianos, o Diogo e o Martins (este de Espinho), Comandantes de dois Pelotões de Artilharia Anti-Aérea, recém-chegados da Metrópole e cuja viagem tinha sido atribulada. Quando navegavam já no Golfo da Guiné, receberam ordem para um dos Pelotões rumar a São Tomé. A Guerra do Biafra estava no seu auge e temia-se que a Nigéria bombardeasse com aviação aquele arquipélago, pois havia pilotos portugueses (talvez não oficialmente) a auxiliar os secessionistas. Situação insólita se deparou ao Comandante do Pelotão destacado, não me lembro já se foi o Camarada Diogo ou o Martins, pois durante todo o tempo de permanência lá não receberam um tostão de pagamento do soldo e todo o pessoal não tinha dinheiro para comprar rigorosamente nada. Andou a assinar vales pelos estabelecimentos civis, que seriam resgatados posteriormente.

Carlos Jorge Mota

segunda-feira, 2 de junho de 2014

XXXI - MOXICO, DESTINO FINAL

-FARDA OU FARDO?-
Finda a Operação, regressámos à Estação de Cangumbe, para onde convergiram todas as Companhias do Batalhão. Novo Comboio Especial nos esperava para nos transportar para a Estação do Luso, cidade hoje denominada de Luena – nome do Rio muito próximo, afluente, pela margem direita, ainda em Angola, no Cazombo, do grande Rio Zambeze, que atravessa vários países, inclusive Moçambique –, capital do Distrito do Moxico, nosso destino final. Aproveito para procurar de novo o “Tatarelho” mas, mais uma vez, estava ausente … tinha ido a Silva Porto, a uma Consulta Médica. Nunca mais o encontrei … até aos dias de hoje. Não sei se ainda é vivo. Espero que sim.

A MESMA ESTAÇÃO NA ACTUALIDADE




ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DO LUSO














Chegados finalmente à Estação do Luso ficamos a saber que a nossa missão consistiria em dar proteção à construção duma estrada - com introdução de melhoramentos da picada já existente, nomeadamente o seu alargamento e corte de algumas curvas, para posterior alcatroamento - que liga o Luso a Vila de Gago Coutinho, localidade já muito próxima da fronteira da Zâmbia, a uns bons quilómetros abaixo do conhecidíssimo Quadrado do Cazombo, como era (ainda é) designado o território angolano que penetra no da Zâmbia, em termos geográficos. Distribuição das Companhias? É-nos dito que, para compensar o nosso isolamento nas Terras-do-Fim-do-Mundo durante quase um ano, a Companhia 2506, a minha Companhia, ficaria instalada dentro da BTR, Bataria de Artilharia de Campanha, nas imediações da cidade do Luso. As outras – CCS, 2504 e 2505 – iriam ser distribuídas ao longo dessa estrada, perigosamente conhecida pelas suas minas e emboscadas constantes, área cuja guerrilha atuante era a da UNITA e do MPLA, que se guerreavam mutuamente. As Companhias do Batalhão instalariam bases fixas, a 2505 no Canaje e a CCS, juntamente com a 2504, mais a sul, no Lucusse, e as suas tropas deslocar-se-iam na tarefa predeterminada, acompanhando as obras à medida que estas progredissem na quilometragem.
ESTRADA A MELHORAR E A PROTEGER

CIDADE DO LUSO TOTALMENTE PLANA











Avançaram para a Estrada, rumo ao seu destino, e nós dirigimo-nos para a BTR em cujas instalações só havia lugar para as Praças. Como a distância ao Luso é de pouquíssimos quilómetros, os Graduados, não estando de serviço, teriam que dormir fora desse Quartel, pelo que houve necessidade de providenciar por alojamento. Havia um Hotel destinado a Oficiais, mas quase sempre lotado, pelo que os restantes Graduados e os que lá não conseguiram lugar procuraram alugar uma casa. Foi o que fiz, conjuntamente com outros, portanto, em grupo. O edifício ficava situado mesmo ao lado do do Comando da ZIL – Zona de Intervenção Leste – cujo Comandante era o então Brigadeiro Bettencourt Rodrigues, que, posteriormente, em 1973, já com o Posto de General, substituiu o General Spínola no CTI Guiné. Curiosamente, os quartos estavam colocados contiguamente ao Posto de Transmissões do Comando, apenas separados por uma parede, pelo que ouvíamos permanentemente os “cânticos” dos Operadores no som monótono de mensagens … até nos habituarmos a ele e já não nos incomodar.

IGREJA


LUSO HOTEL













Ironia do destino: na área do Lucusse, onde a UNITA fez várias emboscadas a pessoal nosso e colocou minas, foi precisamente o local onde Jonas Malheiro Savimbi haveria de ser abatido em 22.02.2002 pelas FAPLA (Forças Armadas Angolanas após a Independência). É no Cemitério do Luso (agora Luena) que ele se encontra sepultado.

Carlos Jorge Mota