sexta-feira, 13 de junho de 2014

XXXIX - O ROSTO DO COLONIALISMO

-FARDA OU FARDO?-
Ao segundo dia em Luanda, já pela noite, chegam todas as Companhias do Batalhão, em coluna, depois da viagem de Comboio entre o Luso e Nova Lisboa, em que transportaram também as viaturas. O local de acantonamento foi no Campo do Grafanil em cujas instalações se colocavam as tropas em trânsito, as vindas da Metrópole e com destino ao Mato e vice-versa.

Sabíamos já qual a data da chegada do Vera Cruz, navio que nos transportaria para Lisboa, mas ela só teria lugar daí a uns dias. Entretanto, como Tropa não pode estar parada, é dos livros, cria ócio e dá mau exemplo aos outros militares, foram-nos atribuídas missões a empreender na própria cidade de Luanda. Eram de vário tipo, por rotação de Companhias: serviço à Rede, em que tínhamos já estado à chegada à R.M.A e durante cerca de 3 meses, e patrulhamento aos Musseques, isto é, ação de policiamento.

MUSSEQUE EM LUANDA
Atendendo a que eu estava interessado em conhecer essa tarefa de polícia, e já não teria outra oportunidade pela proximidade da data do embarque, perguntei ao Fernando Temudo se ele via algum inconveniente em eu o acompanhar numa sua saída, com ele a comandar, obviamente. Ele acedeu e eu então requisitei uma Pistola-Metralhadora FBP (Fábrica de Braço de Prata) para me incorporar no grupo, uma vez que só as Praças transportavam G-3. Ele levou uma Pistola Walther. Embrenhados nos Musseques, a missão consistia em pedir identificação, duma forma mais ou menos aleatória, aos transeuntes. Uns paravam, mostravam a documentação e eram mandados em paz; outros, indocumentados, subiam para um Unimogue, vazio para o efeito - só com o condutor -, para entrega posterior à PSP; e outros, logo que nos avistavam, desatavam numa correria louca, em fuga. O Temudo chegou a mandar uns tiros para o ar, mas sem resultado.

Uma vez a viatura cheia, deslocámo-nos à Esquadra da PSP, julgo que a 1ª, e entregámos os cidadãos para os devidos efeitos: identificação, morada, profissão e averiguações de atividade eventualmente ilícita, pensava eu. A Esquadra era uma casa tipo habitação, com Portão de Jardim, um corredor e depois, percorridos uns 15 metros, a Porta de Entrada. Mas … eis que, logo à passagem do Portão, onde estava uma Sentinela, verifico que, à medida que os cidadãos desciam e penetravam nesse corredor, sem nada lhes ser perguntado, começavam a levar pontapés, estalos, socos. Eles procuravam proteger-se das agressões, mas infrutiferamente. Lá dentro, na sala, depois de passada a Porta, era o chicote que entrava em ação. Pasmado com aquilo, digo ao Temudo: “eh pá, isto é assim? Eles (os da Polícia) já te assinaram a Guia de Entrega? Os homens estão ainda sob a tua custódia! Que merda é esta?”. O Temudo responde-me: “oh pá, temos o barco à nossa espera, deixa lá isso, não levantes problemas!”. Nesse momento senti uma revolta interior, vi ali o Rosto do Colonialismo. Suponho que todos os Guardas seriam gente do recrutamento local, portanto, com anos na Polícia de lá. Um metropolitano jamais faria aquilo. Percebi, então, a razão por que muitos dos cidadãos negros, avistando-nos, fugiam a sete pés. Já teriam passado por aquela situação … Tentei perceber, pelo tempo de permanência na Esquadra, o que lhes faziam depois. Após algumas perguntas, mandavam-nos embora … com porrada já carregada no lombo. Procedimento desumano e que contrariava toda a filosofia reinante de interligação racial apregoada. Fariam o mesmo se os homens fossem brancos? Não fariam, com toda a certeza!.. Naquele momento percebi que todo o meu esforço ao longo daqueles 26 meses não tinha razão de ser. Eu tinha sido enganado.

Como eu transportava uma FBP, arma perigosa se mal manuseada, pela eventual mudança brusca, aleatória, da posição da culatra que ela própria faz, um Guarda alertou-me para a posição da minha, dizendo-me: “cuidado, o senhor já viu como traz a arma?”. Disse-lhe: “Já, fique tranquilo, que eu sei o que estou a fazer!”.-“Como posso ficar descansado? Ela pode disparar sozinha a todo o momento!”, disse ele. Respondi-lhe: “você acha que eu iria agora correr riscos?”… e tiro o carregador, vazio … e mostro-lho. “O cheio, está aqui, no bolso” e bato no bolso lateral da calça da farda do camuflado. “Ah, já estava a ver, estava a ficar com medo”, retorquiu ele, aliviado.

Carlos Jorge Mota

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