domingo, 28 de janeiro de 2018

RADIO CANAGE...DUAS HISTÓRIAS

-TESTEMUNHO-

Antes de chegarmos ao  Canage, um sítio onde não havia nada para além do rio e a "picada, após o nosso Batalhão ter sido "despachado" para a Região Militar Leste, durante o  mês de setembro de 1970, acampámos em Camgumbe, a partir daí, participámos na operação "ESCOVAR", combatemos, patrulhámos, reconstruímos pontões, abrimos picadas, recolhemos populações e reorganizámos o quimbo do Caminhão.

Já no Canage, foi construído um acampamento provisório, junto ao rio do mesmo nome. Tínhamos como missão, a proteção próxima e afastada aos trabalhos de construção da futura estrada que ligaria, nos cerca de  400 Km, o Luso a Gago Coutinho.

PLACA COM AS AS DISTÂNCIAS
Foi neste acampamento que o nosso camarada, António Joaquim Piçarra, soldado atirador do 1º pelotão, com apetência e arte para as tecnologias radiofónicas, construiu um posto emissor: um rádio velho, antena, microfone, gira-discos que tinha sido utilizado no "Festival da Canção do Dange 1969" e discos, isto tudo colocado em cima dum caixote de material militar. Assim nascia, o que viemos a chamar, "Radio Canage". O posto emissor funcionava com uma cobertura reduzida, era no entanto,  possível sintonizar na frequência que foi escolhida, em todo o acampamento. Com o nosso locutor de serviço, Furriel Miliciano João Merca, assistido pelo operador de som, soldado atirador António Joaquim Piçarra, difundia música todas as tardes, do tipo "discos pedidos" e simulava spots publicitários. 

Foi com suporte nesta rádio que  estas duas histórias (entre outras), do testemunho, que vamos relatar.

VISTA PARCIAL DO NOSSO ACAMPAMENTO  - " A RADIO CANAGE" FUNCIONAVA NUMA TENDA COMO A QUADRADA DA FOTO

As Histórias

"Relojoaria Canas Seguro"


ESTÚDIO DA "RADIO CANAGE", COM O LOCUTOR FURRIEL MILICIANO MERCA E O FURRIEL MILICIANO SEGURO 
O Furriel Miliciano Canas Seguro tinha residência em Luanda, onde morava com a esposa, aquando da nossa passagem pelo Grafanil. Após a transferência do Batalhão para a RM Leste, manteve a casa onde a esposa continuava a viver; deslocava-se algumas vezes a Luanda, utilizando, aquilo a que hoje chamamos "férias repartidas". Este nosso amigo tinha uma especial vocação para o negócio e quando regressava da capital, vinha munido dum carregamento de artigos para negociar: relógios de pulso, peças de ourivesaria e outros adereços; os seus clientes eram o pessoal da companhia, ou ainda, outros militares que por ali passavam, especialmente das outras companhias irmãs.

No intervalo duma dessas deslocações, foi montado e inaugurado o "Rádio Canage". Quando do seu regresso, tivemos a ideia de simular um anúncio. O nosso comerciante não tinha conhecimento da existência do posto emissor, e, na tenda que servia de casa partilhada com outros camaradas, havia companheiros que  encarregar-se-iam de fazer com que ele assistisse à difusão do anúncio. Quando nos assegurámos que tudo estava em ordem, começou a encenação: na telefonia ouvia-se música; termina a passagem dum disco; neste momento, ouve-se o locutor - "agora é o momento da publicidade", "não tem relógio ou o seu está avariado?", temos a solução! No Canage, dirija-se à 'Relojoaria Canas Seguro',   relógios bons e  baratos, só em 'Canas Seguro'!",  isto acompanhado com música de fundo. O Seguro que estava sentado, dá um salto, fica incrédulo e com ar de espanto, ainda sem acreditar no que estava a ouvir, interroga-nos: "Eh pá! Vocês puseram este anúncio na rádio?!"


O Furriel que se passou para o lado dos "turras"!

O soldado atirador do 3º pelotão, Carlos Andrade (mais conhecido por "Martelão"), chegava duma coluna de proteção ou duma operação, não nos recordamos qual a missão, ao chegar à tenda que dividia com outros militares, sentou-se na cama a descansar. Naquele momento, ouvia-se música dos anos 60, na rádio. Termina uma canção que estava a passar, entra no ar o locutor: "agora música da nossa terra, vamos ouvir, 'Muxima'  do  Duo Ouro Negro". O Carlos Andrade que não estava a par da existência da nossa rádio, exclama, entre a admiração e a interrogação:  "mas isto é o furriel Merca a falar!?" - "Ah então tu não sabes?" questiona outro camarada, - "não sei o quê?", pergunta o Andrade - "O furriel Merca desertou e passou-se para o lado dos 'turras'!" disse outro militar, - "Ah! Eu sempre achei que ele não era bom!", disse o 'Martelão' e remata, "tamém já não come do porco!" (o porco era um animal que tinha sido encontrado e trazido para o acampamento e estava destinado a um assado no forno).

(A história "Relojoaria Canas Seguro" foi presenciada por mim, a história "O Furriel Merca passou-se para o lado dos "turras"!", foi-me contada pelo 1º cabo atirador Joaquim Pereira dos Santos).


F. Santos - Memórias de Angola
5 de janeiro de 2018

PS. Dedico este testemunho ao nosso saudoso amigo, Carlos Andrade, que já nos deixou. Amigo, onde estiveres vais rir à gargalhada destas lembranças! Até um dia! Um abraço de saudade!

3 comentários:

  1. Transcrevemos na íntegra o mail que acompanhou o presente Testemunho:

    Boa noite amigo!
    Desculpa lá qualquer coisinha, mas hoje, vou intrometer-me num assunto que deveria ser teu!
    Envio-te mais um testemunho, dumas brincadeiras que aconteceram no Canage, brincadeiras que nos ajudavam a parecer que a nossa vida ali era normal.



    Um abraço radiofónico do teu amigo!
    F Santos

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  2. Caro Fernando

    Grato por nos fazeres recordar com o teu Testemunho aqueles momentos que nos faziam esquecer a próxima operação do dia seguinte.

    Na foto do Estúdio da Rádio Canage, está tapado pelo Seguro, o Furriel Mil Simões que a par comigo também fazia locução e muitas vezes estávamos a fazê-lo em conjunto. Entre o “Je” e a coluna do gira-discos está o condutor auto Matos Leite. A Rádio Canage funcionava na tenda do Furriel Mec/Auto José Fernando e sem certeza penso que era uma tenda cónica.

    Quanto a transmitir rádio do lado do in só tinha conhecimento da “Maria Turra”. Esta é mesmo a maneira de estar do “Martelão”. Que descanse em Paz e se um dia também partirmos que “ que o diabo só se lembre de nós pelo menos meia hora depois de estarmos no Céu.
    Quanto ao nosso Cabo Guloso vou ter uma conversa com ele muito em breve.

    Para todos Aquele Grande Abraço

    J Merca

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  3. O nosso Cabo Guloso já tem a história dele bem encaminhada!

    Um abraço daqui da Cidade da Praia!
    F. Santos

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